“Urge a atenção de todos nós na fixação dos limites éticos para uso da tecnologia”
17 de outubro de 2019
Por Luís Indriunas, da Avocar Comunicação
Em reunião-almoço no IASP, a ministra do STJ Nancy Andrighi fala sobre manter-se humano na era digital, detalhando os desafios para o Judiciário nos novos tempos
A presença da tecnologia na vida das pessoas e nos tribunais tem trazido preocupações para a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Nancy Andrighi, que proferiu a palestra “Manter-se humano na era digital” na tradicional reunião-almoço do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), no dia 11 de outubro.
“Nossa convidada foi a primeira mulher corregedora-geral do Tribunal de Justiça, nunca sem deixar de lado a questão humana. Como mencionou em outro momento o atual presidente do STJ, João Otávio Noronha, ela tem a capacidade de atenção aos fatos, desses fatos às normas, mas nunca desprezando o valor humano”, disse o presidente do IASP, Renato de Mello Jorge Silveira, ao apresentar a convidada.
Para Nancy Andrighi, “urge a atenção de todos nós na fixação dos limites éticos para uso da tecnologia”.
Ao iniciar sua explanação, a ministra se autodefiniu como “uma imigrante digital”, que seria o grupo de pessoas que não nasceu na era dos avanços tecnológicos, mas que tem que se adaptar aos mesmos. “É nessa sociedade de informação que convivem duas gerações: os nativos digitais e os imigrantes digitais”, disse, pegando emprestado os termos cunhados pelo autor estadunidense Marc Prensky. Os nativos são os que nasceram e cresceram nesse novo contexto.
A ministra brincou dizendo que, como imigrante digital, não tem condições de corrigir as decisões que são feitas em seu gabinete, nem seus votos, usando exclusivamente a tela do computador, mas imprimindo-as. Para ela, a substituição dos volumes de autos de papel por computadores e por vasos de orquídeas ou bromélias nas mesas dos gabinetes dá a “falsa ideia de que está tudo sobre controle”. “Esta é a verdadeira caixa-preta”.
Já as prateleiras lotadas de processos aguardando julgamento, comuns antigamente, traziam uma “visão conscientizadora” do tipo e do grau “de dor que subjazia em cada processo, produzindo um sentimento de preocupação e solidariedade”.
Nancy Andrighi alerta, no entanto, que não tem aversão à tecnologia, já que é, por exemplo, a única ministra do STJ que promove conferências via Skype com ambas as partes, evitando a necessidade de deslocamentos até Brasília.
Mas ainda há limites, como a acessibilidade dos acessos eletrônicos para advogados cegos, que, segundo a Ordem dos Advogados Brasil (OAB), são em torno de mil. Nesse sentido, a ministra trabalha há dois anos para criar condições a esses profissionais, garantindo o processamento de 500 mil páginas por dia, o que pode tornar o STJ acessível a pessoas com deficiência visual até o final do ano. “Garantido que o STJ possa ser realmente chamado de Tribunal da Cidadania”.
A importância dos memoriais
A ministra adverte que o volume e o trabalho dos juízes não diminuíram, mas mudou com as novas tecnologias. Ela contabiliza apenas na semana da reunião-almoço, 548 recursos na pauta virtual da 3ª Turma, cerca de 300 na Corte Especial e 30 apenas na 2ª seção. “É verdadeiramente aflitivo e árduo o trabalho do juiz no julgamento. Passam-se horas e horas lendo a tela do computador sem travar nem um diálogo”.
O que era feito homem a homem, agora é homem versus máquina, diminuindo, por exemplo, as seções presenciais e suprimindo as discussões. “Os debates são educadores, já que mostram pontos de vista que não tínhamos”.
“Nós sabemos que até a entonação do julgador ou do vogal retrata, muitas vezes, a agudeza e a dor das partes no processo”, explica a magistrada.
Por causa dessa nova realidade, Nancy Andrighi enfatiza a importância dos advogados mandarem memoriais para os julgamentos virtuais. “Memorais curtos que chamem a atenção, porque é a única forma que o advogado tem de chamar a atenção para a especialidade contida no seu processo”.
Limites da inteligência artificial
Durante todo o seu discurso, Nancy Andrighi fez questão de pontuar a humanidade necessária ao juiz e no processo, considerando sagrada a função de todos (advogados, funcionários e juízes). “A filosofia, o amor ao próximo e dever de cuidado com cada processo não estão obsoletos”.
Nesse sentido, ela pede prudência ao Judiciário e aponta os limites da inteligência artificial. Para tal, a ministra exemplifica com o caso de mulheres vítimas de assédio sexual nos transportes públicos, lembrando “todas as queridas advogadas que aqui ouvem”.
Se usada a inteligência artificial, cujo trabalho é analisar um universo com centenas de julgados idênticos aplicando uma tese, a máquina iria separar a tese consolidada no tribunal de que o assédio sexual é fato de terceiro, garantindo a excludente de responsabilidade da companhia que não responderia pelos danos causados ainda que decorrentes de uma atitude ilícita ou criminosa de outro passageiro .
Assim, essas mulheres não teriam direito a nenhuma indenização. “Dirá a máquina, que no meu tribunal é o Sócrates: a tese está firmada há muitos anos, portanto deverá ser aplicado os precedentes”. É nesse momento que deve surgir o olhar atento e dedicado do juiz, avalia a magistrada. “Cabe a nós juízes o olhar para a lei, ler a lei com amorosidade […] com viés humanizado, não posso esquecer que nos polos estão pessoas”.
No caso específico do assédio sexual, Nancy Andrighi defende reinterpretar a lei, mostrando que é o dever do transportador levar o passageiro incólume ao seu destino, lembrando que a incolumidade não é apenas física, mas também psíquica e emocional. “Imagina o emocional dessa mulher assediada no transporte de manhã ter que, à tarde, pegar o mesmo transporte e voltar para a casa”.
A ministra lembra que 15 anos atrás, quando a jurisprudência da excludente de responsabilidade foi consolidada, não se ouvia falar em assédio sexual em transporte de passageiros. “E não se olvide que esse entendimento não se aplica somente às mulheres, porque amanhã os homens também poderão ser assediados no mesmo meio de transporte. Não é uma decisão de gênero, amanhã vai acontecer com o jovem.”
Entre os cerca de 200 profissionais presentes na reunião-almoço, estavam os ex-presidentes do IASP, Rui Celso Reali Fragoso, Maria Odete Duque Bertasi, Ivette Senise Ferreira e José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, a diretora da OAB – seção São Paulo, Raquel Preto, o presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), Renato Cury, e os ex-ministros Francisco Rezek, Sidnei Benetti e Paulo Adib Casseb.
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