Nota – Considerações sobre competência dos entes da Federação em relação à pandemia

O momento do País é delicado. A todo instante, surgem notícias sobre o avanço do surto da Covid-19, o que conduz a um cenário de instabilidade institucional aguda, fruto do desconforto generalizado com as restrições impostas e seus efeitos negativos sobre a economia e a rotina de empresas e cidadãos. Em meio a esse quadro, autoridades da União, Estados e Municípios se dispersam numa disputa por protagonismo, que, não raro, assume a forma de divergências no que respeita à dimensão e gravidade do problema e às estratégias e meios para enfrentá-lo.

Nesse contexto, é necessário que se (re)examine a Constituição, com o objetivo de identificar a quem incumbe, e em que termos, o papel institucional de coordenar a gestão da crise.

União: competência privativa para planejar e promover o combate a calamidades públicas

Tratando-se de epidemia de envergadura nacional, estão em jogo interesses de todos os cidadãos e são necessárias medidas coerentes e eficazes por parte das autoridades, para sua contenção. Nesse quadro, é razoável que a União, que existe para congregar de modo “indissolúvel os Estados e Municípios” e defender o Estado Brasileiro como um todo, coordene as ações a serem adotadas, determinando a direção e os meios a serem empregados para obtenção do resultado pretendido. Afinal, somente assim se evitará, nas palavras do Supremo Tribunal Federal (STF), “a possibilidade anárquica de o Brasil vir a submeter-se” a tantas estratégias oficiais de combate ao desastre em questão “quantas forem as unidades da Federação [1]”.

De modo coerente com esse racional, a Constituição atribui à União competência privativa [2] para “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas” (art. 21, XVIII). E, em linha com essa exclusividade, todas as demais regras constitucionais sobre o tema remetem a poderes federais. De fato, “para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública”, quem está legitimado a “instituir… empréstimos compulsórios” é a União (e não os demais entes), mediante lei complementar federal (art. 148, I). Do mesmo modo, é a ela que incumbe, por medida provisória com força de lei federal, abrir “crédito extraordinário” para custeio de gastos oriundos de “de calamidade” (art. 167, §3º c/c art. 62). Portanto, numa interpretação lógico-sistemática, verifica-se que não só o fim de combater desastres pertence privativamente à União, mas também os meios constitucionalmente qualificados para atingi-lo. Disso resulta que as determinações da União nesse âmbito devem ser respeitadas pelos demais níveis federativos.

Questão que se põe, entretanto, é definir qual o objeto dessa competência privativa e em que termos ela deve ser exercida pelo poder central. Afinal, a outorga constitucional está estruturada a partir de dois verbos (planejar/promover) e um complemento (defesa permanente contra calamidades públicas, “especialmente as secas e as enchentes”), sendo necessário compreendê-los, para delimitar seu sentido e âmbito de aplicação [3].

Quanto ao objeto, diante da cláusula “especialmente… secas e… inundações”, alguns poderiam defender que o conceito constitucional de calamidade pública compreende apenas “catástrofes naturais” como as exemplificadas pela norma, mas não epidemias. Tal interpretação, porém, não parece a mais adequada. Realmente, na doutrina, Hely Lopes Meirelles [4], Gustavo Diógenes Gonçalves [5];e Hésio Fernandes Pinheiro [6] convergem no sentido de que calamidade pública consiste em “um conjunto de situações reconhecidamente anormais que impliquem em grave perturbação da ordem pública, decorrentes de desastres… de origem natural ou provocada [7]”, inclusive “epidemias letais… que afetem profundamente a segurança ou a saúde públicas, os bens particulares, o transporte coletivo, a habitação ou o trabalho em geral [8]”. E, na jurisprudência, o Pleno do Supremo Tribunal Federal entende que epidemias podem caracterizar calamidade pública, conforme se lê:

“(…) é possível identificar situações específicas caracterizadas pela relevância dos temas. São os casos, por exemplo, dos créditos destinados à redução dos riscos de introdução da gripe aviária e de outras doenças exóticas na cadeia avícola brasileira (…) Assim, por exemplo, se, por um lado, não se pode negar a relevância de abertura de créditos para prevenção contra a gripe aviária, por outro lado pode-se constatar que, nessa hipótese, os créditos são destinados à prevenção de uma possível calamidade pública ainda não ocorrida. Não há calamidade pública configurada e oficialmente decretada, mas apenas uma situação de risco (…)” (STF, Pleno, ADI/MC 4048, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 14/05/2008)

Quanto ao sentido da norma, deve-se registrar que, na linguagem natural, planejar é “criar ou elaborar um plano” [9], enquanto promover significa “dar[-lhe] impulso”, “estimular, incentivar” ou, ainda, “empurrar” [10]. Desse modo, a Constituição refere-se a uma competência para planejamento, específica para casos de calamidade. Logo, o que se confere à União é o papel de “estabelecer metas e eleger os meios que serão utilizados para que elas sejam atingidas”, criando-se, com isso, um plano nacional de ação na matéria [11]. Não havendo no dispositivo restrições quanto à natureza do plano, segue-se que ele pode assumir qualquer das formas admitidas por nossa tradição jurídica, a saber: a indicativa, a indutiva ou a imperativa. Indicativo é o plano que contém elementos sobre determinado tema, sendo oferecido aos “interessados, para que estes possam melhor orientar-se… não havendo… qualquer traço de cogência” [12]. Indutivo é aquele estruturado de modo a obter de seus destinatários “uma forma de atuar e de proceder que se afine com os objetivos [nele] estabelecidos”, mediante estímulos e incentivos [13]. Por fim, imperativo é o plano cogente, i.e., cujos destinatários são “submetidos às regras” nele previstas e “obrigados a uma determinada conduta”, sob pena de sanções [14].

Uma última questão refere-se à expressão “defesa permanente contra calamidades”, contida no dispositivo examinado. Com base nela, alguns poderiam sustentar que à União caberia apenas um “plano permanente de combate a desastres”, sem poder, entretanto, intervir em situações abruptas, ainda que emergentes e de dimensões nacionais. Tal interpretação não parece própria, seja do ângulo histórico, seja do ângulo sistemático. Afinal, deve-se recordar que, historicamente, a Constituição de 1891 “apenas autorizava o poder central a prestar socorro aos Estados que o solicitassem, no caso de algum evento do gênero”. Contudo, “tantos foram os pedidos que, a partir da Constituição de 1934”, tal fórmula foi substituída pela “defesa permanente” da União, encampada pela atual Constituição [15]. Ademais, sob a ótica sistemática, entender que a União não possa agir diante de novas emergências conduziria ao absurdo de ficar suspensa uma defesa que, pela própria Constituição, deveria ser definitiva, isto é, contínua, sem interrupções. Logo, como o texto constitucional obriga a União a sempre defender o País contra calamidades, cabem novas medidas para cada caso que surgir.

Em suma, diante de tais elementos, a União detém competência privativa para o planejamento em matéria de calamidade pública (inclusive epidemias). O plano de ação daí resultante poderá, a depender de seus termos, ser vinculante (imperativo) ou não para os demais entes federativos.

União, Estados e Municípios: competência para agir contra o surto de Covid-19, mediante coordenação da União

Desdobra-se do acima exposto que, em caso de calamidade pública de proporções nacionais, cabe à União coordenar a execução das medidas de combate a serem adotadas, podendo, até mesmo, condicionar ou restringir o âmbito de atuação dos demais entes nessa matéria. Afinal, estando em jogo interesses de toda a Nação, deve haver sinergia entre as esferas de poder, cabendo ao ente central garantir ações convergentes, uniformes e coerentes entre si em todo o território.

Trata-se, portanto, de coordenação. Sendo assim, o exercício da competência federal para planejamento em matéria de calamidades não exclui providências por parte de Estados e Municípios no sentido de executar ou dar concretude ao plano. Naturalmente, tais providências serão adotadas pelos entes descentralizados com base nas suas competências constitucionais pertinentes, como, em caso de epidemias, aquela que os obriga a “cuidar da saúde pública” (art. 23, II). Entretanto, estando tais ações inseridas no contexto de calamidades públicas, prevalece a competência da União, pelo critério de especialidade. Disso resulta que as medidas de enfrentamento por parte de Estados e Municípios devem se afinar com as determinações centrais, sob pena de invalidade. Noutros termos:

“A atuação da União no enfrentamento das catástrofes… é sem dúvida muito importante. Mas não exime as demais autoridades públicas [estaduais ou municipais] de participarem e contribuírem na debelação dos problemas que também lhes digam respeito… pois… demandam ação conjugada e permanente de todos os integrantes da Federação [16].

É exatamente sob esse ângulo que se pode compreender a liminar recém proferida pelo Min. Marco Aurélio de Mello, no sentido de que, observada a razoabilidade, compete à União dispor nacionalmente sobre medidas de combate à Covid-19, inclusive para impor condições a Estados e Municípios para que estes restrinjam a locomoção no âmbito de suas jurisdições, como forma de conter a epidemia. Daí se ter reputado constitucional a Lei nº 13.979/20. Vejam-se os critérios decisórios invocados:

“O momento é de crise aguda envolvendo a saúde pública. Tem-se política governamental nesse campo, com a peculiaridade de tudo recomendar o tratamento abrangente, o tratamento nacional. Sob essa óptica, há de considerar-se princípio implícito na Constituição Federal – o da razoabilidade, na vertente proporcionalidade.

As alterações promovidas na Lei nº 13.979/2020 devem ser mantidas em vigor, até o crivo do Congresso Nacional, sob pena de potencializar-se visões político-partidárias em detrimento do interesse público.

É certo que, mediante a nova redação do artigo 3º, inciso VI, alínea “b”, da referida Lei, versou-se a problemática do transporte intermunicipal. Imagina-se, ante o sentido etimológico do vocábulo, tema ligado à atuação estadual. Ocorre que o tratamento da locomoção de pessoas tinha de se dar de forma linear, ou seja, alcançando todo o território brasileiroRevela-se inviável emprestar ênfase maior ao critério da descentralização do poder, deixando a cargo de cada Estado restringir ou não a locomoção entre os Municípios.           
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Já o § 7º trata da atuação dos gestores locais de saúde, contemplando, mais uma vez, a coordenação, no que deve ser central, ou seja, do Ministério da Saúde, presentes as disciplinas dos incisos I, II, V, VI e VIII do artigo 3º. Não se tem situação suficiente à glosa precária e efêmera, no que esta poderia provocar consequências danosas, consequências nefastas relativamente ao interesse coletivo, ao interesse da sociedade brasileira. Em época de crise, há mesmo de atentar-se para o arcabouço normativo constitucional, mas tudo recomenda temperança, ponderação de valores, e, no caso concreto, prevalece o relativo à saúde pública nacional

Note-se, por fim, que, sob a perspectiva da razoabilidade, a conclusão da medida liminar em questão não poderia ser outra. Afinal, a par do interesse geral decorrente do fato de que a epidemia se alastrou no País como um todo, o vírus é risco biológico que não reconhece fronteiras entre Estados ou Municípios nem competências de caráter localizado. Por isso, seria um contrassenso afastar regulações nacionais que assegurem coordenação e eficácia no combate ao surto, apenas para satisfazer a um ideal de descentralização que, diga-se, já foi relativizado por motivos questões muito menos graves. 

Conclusão

Pelo exposto, parece-nos que a União detém competência para coordenar, inclusive de modo imperativo, as ações de combate à Covid-19, a partir de uma leitura sistemática do art. 21, XVIII, da Constituição em face dos demais dispositivos constitucionais atinentes ao tema, bem como de doutrina e jurisprudência sobre a matéria. Isso, sem prejuízo de providências por parte de Estados e Municípios no âmbito das respectivas atribuições, desde que afinadas com as determinações centrais.

Hamilton Dias de Souza 
Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho

Notas

[1] STF, Pleno, ADI 158, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-08-2018.

[2] “Os Estados-membros e o Distrito Federal não dispõem de competência para legislar sobre horário de verão, eis que falece a qualquer ente federado competência legislativa para dispor sobre o seu próprio horário, considerada a dimensão nacional que qualifica essa particular atribuição que a Constituição da República outorgou, em regime de exclusividade, à União Federal, sob pena de entendimento em sentido contrário gerar a possibilidade anárquica de o Brasil vir a submeter-se a tantas horas oficiais quantas forem as unidades da Federação. – Consequente inconstitucionalidade formal de diploma legislativo estadual, em virtude, precisamente, da usurpação, pela unidade federada local, de competência outorgada, em caráter privativo, à União Federal, seja em face do que prescreve o art. 21, XV, seja à luz do que estabelece o art. 22, XVIII, ambos da Constituição da República” (ADI 158, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 27-08-2018)

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 6ª ed. rev. ampl. São Paulo: Noeses, 2015. PP. 243 e ss.

[4] MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p.98.

[5] GONÇALVES, Gustavo Diógenes. Calamidade pública no âmbito financeiro: um estudo sobre a aplicabilidade do conceito e seus impactos na gestão e prestação de serviços públicos no Estado de Minas Gerais. Disponível em (acesso em 26/03/2020) <http://dspace.nead.ufsj.edu.br/trabalhospublicos/bitstream/handle/123456789/121/P%C3%B3s%20banca%20-%20Vers%C3%A3o%20Final%20-%20Gustavo.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.

[6] PINHEIRO, Hésio Fernandes. Calamidade Pública. Disponível em (acesso em 26/03/2020) <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/13699/12597).

[7] GONÇALVES, Gustavo Diógenes. Op. cit.ibid.

[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit. P. 102.

[9] Vide termos “planejar” e “planejamento” no Dicionário On-line Michaelis.

[10] Vide termos “promover” e “impulsionar” no Dicionário On-line Michaelis.

[11] COUTO E SILVA, Almiro do. Problemas jurídicos do planejamento e Responsabilidade do Estado e problemas jurídicos resultantes do planejamento. RPGE, n. 27 (57). PP. 133-147 e 123-132, respectivamente.

[12] Id. ibid.

[13] Id ibid.

[14] Id. Ibid.

[15] CANOTILHO, J.J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. Ver comentário ao art. 21, XVIII, de autoria de MENEZES DE ALMEIDA, Fernanda Dias. P. 734.

[16] Id. ibid.