Judith Martins-Costa aponta riscos de insegurança e aumento da litigiosidade com o PL 4/2025

Palestra da jurista em reunião almoço do IASP discorreu sobre as mudanças trazidas pelo Projeto de Código Civil

O Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) realizou nesta segunda-feira (24/3), no Hotel Intercontinental de São Paulo, sua segunda reunião almoço do ano. O evento teve como palestrante a jurista Judith Martins-Costa, que discorreu sobre o tema Projeto de Código Civil: Riscos e Erronias, em referência às mudanças do Código Civil de 2002 que tramitam no Senado. A abertura do encontro foi realizada por Diogo Leonardo Machado de Melo, presidente do Instituto. Também estiveram presentes na mesa Marina Coelho Araújo, vice-presidente, e Heidi Florêncio Neves, diretora Cultural do IASP.

Diogo Melo saudou a presença de Judith Martins-Costa, cuja obra, segundo ele, “influenciou gerações de civilistas e moldou o pensamento jurídico contemporâneo com elegância, profundidade e coragem intelectual e representa o que há de mais elevado na tradição jurídica brasileira”. Ao abordar o tema da palestra, ele classificou a importância de debate amplo sobre o Projeto de Código Civil, tal como sugerido pelo próprio senador Rodrigo Pacheco, então presidente do Congresso, em reunião almoço do IASP no ano de 2024.

“Estamos diante do anúncio da maior reforma do Código Civil desde 2002. Trata-se de uma mudança estrutural com impactos profundos no dia a dia das pessoas e nas relações privadas. E exige debate público, com propostas, transparência e participação ampla da sociedade jurídica. Não podemos permitir que alterações dessa magnitude avancem sem o necessário amadurecimento técnico, sem escuta plural e sem a devida responsabilidade institucional. O IASP não se omitirá. Seguiremos atuando, como sempre fizemos, com independência, compromisso e dedicação ao fortalecimento do Estado de Direito”, afirmou o presidente do Instituto.

A reunião almoço de março também serviu para homenagear as mulheres do IASP. Machado de Melo ressalta a reafirmação do Instituto em sua compreensão de que a igualdade de gênero não é apenas uma aspiração, mas uma exigência ética, jurídica e civilizatória. “Celebramos não apenas as conquistas das mulheres, mas também sua presença transformadora — ao mesmo tempo símbolo de resistência e sinal de futuro. Trabalhamos para garantir que as vozes femininas sejam ouvidas, respeitadas e cada vez mais protagonistas nas discussões jurídicas, acadêmicas e institucionais”, afirma o presidente do IASP.

Ao iniciar sua palestra sobre o Projeto de Lei 4/2025, a jurista e presidente do IEC (Instituto de Estudos Culturalistas) afirmou estarmos na iminência de assistir à “destruição do Código Civil”. Segundo ela, houve uma “imperitíssima reforma que pretendeu, em escassos 180 dias, modificar mais de 1.200 artigos, promovendo mais alterações em relação ao Código vigente do que desse em relação ao Código de 1916”. Ela também criticou o efeito de tais mudanças em relação à letra, ao espírito e ao seu sistema.

Populismo jurídico

Tomando emprestado o exemplo de alguns episódios da política, quando uma prática cujo líder toma para si o encargo de salvar o país e o povo, Judith classificou o PL 4/2025,  como uma obra de “populismo jurídico”. “No Direito, o populismo se expressa pela promessa implícita e, muitas das regras propostas, explícita no discurso dos reformadores proteger os setores vulneráveis da população. Ao mesmo tempo, trata a elite jurídica tida como complexa, complicada e divorciada da realidade da população e as empresas como inimigas a serem penalizadas”, afirmou.

Entre três pontos em que, segundo a jurista, transparece o “populismo jurídico” no projeto de reforma do Código Civil, aponta o “excesso de regras contraditórias, neologismos; a existência de expressões sem densidade normativa e a consumerização completa de contratos e a transfuncionalização da responsabilidade civil”.

Integrante titular da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, do Instituto Brasileiro de Direito Privado e da Societé de Legislation Comparée, de Paris, ela abordou os problemas do Projeto de Lei e apontou uma equação a considerar. Segundo Judith, um texto composto por conceitos indeterminados e termos estranhos à linguagem jurídica não pode servir como garantia mínima de previsibilidade nas relações civis. “E, em caso de aprovação do anteprojeto como está, haverá aumento da insegurança e da litigiosidade”.

A jurista aponta ainda outras inconsistências: “O Brasil é um Estado Democrático de Direito. Há uma democracia de direito. Só pode haver democracia de direito e no direito. Não existe democracia de e no arbítrio. Justamente por isso, eu direi que não pode se dar ao luxo de ser inseguro. Cidadãos e cidadãs devem saber o que esperar, devem poder confiar em como o direito será aplicável”.

Enxurrada de referências

Entre outros pontos criticados, a professora frisa o fato de o PL 4/2025,  promover o uso de linguagem indeterminada e conta um aumento de 650% das referências à função social do contrato e da propriedade. “Não contentes com esse aumento exponencial de expressões indeterminadas, os projetistas inseriram o princípio da boa-fé em mais de 32 enunciados além dos já existentes”, aponta a palestrante, para quem até hoje não há mínimo consenso sobre o significado da expressão “função social” e paira o risco de ampliação de insegurança aos contratantes.

A professora indicou ainda a presença de regras contraditórias que elevam a possibilidade de litígios e de artigos diversos tratando de temas idênticos e de modo superposto e/ou contraditório. Em termos der linguagem, afirma haver “muitos enunciados escritos de modo coloquial, destituídos da imprescindível linguagem técnica”.

“Como tenho dito, linguagem técnica não é linguagem pedante, é linguagem precisa, apurada”, disse. Para exemplificar tais casos, Judith indica no PL 4/2025, o tratamento dado à regra que conceituou patrimônio como um “complexo de relações jurídicas e experimentadas por uma ou mais pessoas”. E questiona: “Como se experimentam relações jurídicas? Como experimentamos roupas ou pratos em um restaurante?”.

Quebra-cabeças

Na disciplina dos contratos, Judith faz uma analogia entre o Projeto de Lei e um puzzle, no qual de um lado faltam peças e de outro a superposição delas. Afirma ainda que as relações contratuais são cindidas em uma multiplicidade de termos que incluem contratos paritários, contratos simétricos, contratos simétricos e paritários, contratos simétricos ou paritários, contratos assimétricos (“seria o antônimo de simétricos?”), contrato de adesão, contratos empresariais, contratos civis, contratos civis e empresariais, analógicos. “Será que ficou faltando a previsão dos contratos impressos em papel, ou dos contratos manuscritos?”, questiona.

Sobre o direito de família, a palestrante citou inúmeras incongruências. Como exemplo, a possibilidade do Oficial de Registro Civil notificar pessoalmente o suposto pai para que se faça o registro da criança ou realize o exame de DNA. E, “em caso de negativa do indicado como genitor de reconhecer a paternidade, bem como de se submeter ao exame do DNA, o oficial deverá incluir o seu nome no registro, encaminhando a ele cópia da certidão”. E além disso, o oficial “encaminhará o expediente ao Ministério Público ou à Defensoria Pública para propor ação de alimentos e a fixação do regime de convivência”, criando-se uma insegurança jurídica sem precedentes.

Ao final da palestra, após discorrer sobre outras atecnias, artigos heterodoxos e parágrafos confusos, a jurista fez uma convocação aos presentes: “Com toda a minha consideração e amizade, eu convoco a todas e todos, as instituições jurídicas a lutar contra o PL 4/2025, pois eu quero que os senhores não durmam, nestas e nas próximas noites, até que esse PL tão desastroso para o Brasil seja engavetado e esquecido para sempre”.

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