Nota técnica
O Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, associação civil de fins não econômicos que congrega atualmente os principais juristas, professores, advogados, magistrados e membros do Ministério Público do País, é a instituição jurídica associativa mais antiga do Estado de São Paulo, tendo sido fundado em 29 de novembro de 1874.
Tendo o IASP, ao longo de seus 146 anos, colaborado de forma decisiva com a sociedade brasileira na concretização do Estado Democrático de Direito, vimos, nesta oportunidade, apresentar a seguinte Nota Técnica, para expor nossas preocupações quanto a dispositivos do Projeto de Lei de Conversão 15/2021, relativo à Medida Provisória 1040/2021, e oferecer subsídios para auxiliar as casas legislativas brasileiras na análise do direito projetado.
(i) Sobre a extinção da Sociedade Simples e os impactos tributários – artigos 38 a 41 do PL 15/2021
Sob os pretextos da “facilitação para abertura de empresas” e da “desburocratização societária”, entre outras coisas, o PL 15/2021 (originado da MP 1040/2021) estabelece que todas “as sociedades, independentemente de seu objeto ou do órgão em que se encontram registradas, ficam sujeitas às normas legais e infralegais em vigor aplicáveis às sociedades empresárias” (art. 38), vedando a constituição de sociedade simples após a entrada em vigor da lei e determinando que as já existentes passem a ter as suas inscrições perante o Registro Público de Empresas Mercantis (as Juntas Comerciais, art. 39 e parágrafo único), promovendo alterações em dispositivos do Código Civil e de diversas outras legislações.
No entanto, as alterações de nosso ordenamento jurídico pretendidas pelo referido projeto de lei de conversão de Medida Provisória, além de marcadas por flagrantes vícios de origem, como adiante se expõe, estão formuladas de modo assistemático, causando efeito contrário ao propalado como motivos de sua apresentação, causando perplexidade e imensas preocupações à comunidade jurídica.
Assim se diz por que as sociedades empresariais (anteriormente denominadas de comercias) e as sociedades simples (outrora designadas de civis), revestem naturezas jurídicas distintas, sendo de todo inadequada a pretendida equiparação dos tipos societários, com a extinção das sociedades simples e, pior, sem que haja um profundo debate pela sociedade civil.
As sociedades simples contemplam em seu objeto o exercício de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística (parágrafo único do art. 966, do Código Civil), notadamente aquelas atividades desenvolvidas por categorias profissionais regulamentadas (advogados, arquitetos, contadores, engenheiros, médicos, psicólogos, etc.), que exigem formação universitária, submissão à fiscalização dos órgãos de classe e às regras específicas aplicáveis a cada campo de atuação, considerando primordialmente essa atuação através do trabalho intelectual de seus sócios.
Já nas sociedades empresariais, denota-se o objetivo de desenvolver atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens e serviços (art. 966 do Código Civil), sem a necessidade da graduação profissional de seus sócios, tampouco a imposição de condutas éticas e comportamentais fixadas por órgãos de classe. Podem constituir-se por sócios com diferentes níveis de formação e interesses, que organizarão os fatores da produção adequados a seu objeto social; e esse pode abarcar diversas atividades empresariais.
Portanto, enquanto nas sociedades simples encontramos a atuação e produção intelectual personalíssima dos sócios, que exercem suas profissões sob o regime de responsabilidade ilimitada, nas sociedades empresariais a característica primordial é o interesse mercantil de quem as constitui, sem que importe a formação profissional dos integrantes; esses têm sua responsabilidade limitada ao capital social, e podem valer-se do pedido de recuperação extrajudicial ou judicial.
Esta dualidade de tipos societários (empresária ou simples) tem favorecido e estimulado o desenvolvimento sócio-econômico nacional, especialmente ao longo dessas quase duas décadas desde a entrada em vigor do Código Civil, e vem sendo considerada pela doutrina e jurisprudência como meio apto a gerar segurança jurídica e previsibilidade nos respectivos campos de atuação.
As mudanças propostas, notadamente com a extinção das sociedades simples, acabarão por forçar os profissionais liberais ora organizados sob esse modelo a adotar forma societária claramente imprópria à natureza das atividades que exercem, sem que se apresente justificativa razoável para esse movimento claramente irrefletido. Trarão, ainda, consequências nefastas e gravíssimas ao exercício de diversas profissões
É certo que, ao contrário de outras profissões, as sociedades de advogados obedecem a regulamentação própria que deverá prevalecer sobre as mudanças pretendidas por se tratar de lei específica (Lei 8.906/94), mas a desestruturação sistêmica e equívocos interpretativos que serão causados caso o projeto venha a ser aprovado pelo Senado Federal acarretarão o efeito contrário à “facilitação” e “desburocratização” almejadas, além de aumentar exponencialmente a litigiosidade que hoje já assola nossos Tribunais.
A eventual implementação do disposto nos artigos 38 a 41 do PLV 15/2021 (decorrente da MP 1.040/2021), com a consequente equiparação de todas as sociedades a sociedades empresárias, assim como a extinção das sociedades simples, poderá gerar também graves reflexos de natureza tributária. Se o texto vier a ser aprovado em definitivo haverá, no mínimo, insegurança jurídica e elevação da litigiosidade fiscal em relação a diversas sociedades de prestação de serviços constituídas por profissionais liberais como médicos, terapeutas, fonoaudiólogos, odontólogos, psicólogos, veterinários, engenheiros, arquitetos, advogados, contadores, economistas e outros.
Com efeito, não obstante a sujeição dessas sociedades, via de regra, a regime diferenciado de tributação pelo ISS (imposto sobre serviços), não se pode desconsiderar que as legislações de diversos municípios determinam expressamente a não aplicação do regime a sociedades tidas por empresárias ou empresariais. No município de São Paulo, por exemplo, há expressa previsão de inaplicação da sistemática diferenciada a sociedades que “se caracterizem como empresárias ou cuja atividade constitua elemento de empresa” (cf. art. 15, § 2º, VII da lei municipal paulistana n. 13.701/2003). Não por outra razão, os atuais sistemas eletrônicos de cadastro e monitoramento de contribuintes de milhares de prefeituras municiais estão programados para proceder à automática exclusão do sistema diferenciado, por exemplo, de sociedades inscritas em juntas comerciais (inscrição esta também determinada nos artigos 39 e 40 do PLV em questão).
Há fundado receio, no meio jurídico em geral, de que a ressalva no sentido de que tal equiparação “não altera as normas de direito tributário aplicáveis às cooperativas e às sociedades uniprofissionais” (conforme redação proposta para o § 1º do art. 38) venha a ser considerada inócua, ao fundamento de que a competência para tanto seria exclusiva de lei complementar, além de várias outras discussões jurídicas que o tema poderá suscitar.
As alterações de que se cuida, portanto, são de todo inoportunas, em especial no momento atual no qual devem ser as sociedades em geral incentivadas a exercer / retomar suas atividades, senão com menor (nunca maior) carga tributária do que aquela atualmente existente, ao menos com maiores segurança jurídica, certeza e transparência em relação à tributação a que estejam efetivamente sujeitas.
Justifica-se, em suma, a não aprovação das referidas propostas de alteração legislativa, tal como postas.
(ii) Sobre o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (SIRA) – artigos 13 a 16 do PL 15/2021
A criação do Sistema Integrado de Recuperação de Ativos para conter base de informação, sob controle judicial, quando provocado, apresenta elementos de interesse e utilidade; mas a forma proposta contém falhas de grande relevância, como se procura demonstrar.
O primeiro tema preocupante no PL 15/2021 seria a incompetência da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional para desempenhar tal atribuição. Como é cediço, a PGFN tem como missão representar judicialmente a União nas causas de natureza fiscal (CF, §5º, art. 29), bem como na execução da dívida ativa de natureza tributária, observado o disposto em lei (CF, §3º, art. 131), sem prejuízo da legislação infraconstitucional em vigor. Porém, ao combinar-se o art. 13 com o art. 14, II do PL 15/21, evidencia-se que um dos objetivos é conferir efetividade às decisões judiciais que visem à satisfação das obrigações de todas as naturezas, em âmbito nacional. Neste ponto, há ilegal ampliação da competência da PGFN.
A segunda questão a discutir, nesse campo, são as diversas lacunas, imprecisões e dúvidas que o texto legislativo revela. Não há a definição de que instrumentos, mecanismos e iniciativas o constituem. Essa lacuna legislativa poderá levar a potenciais excessos por parte da PGFN.
Há sobreposição de funções: o Sira assemelha-se a um bureau de crédito, extrapolando a competência da PGFN. Um dos objetivos é reunir “dados cadastrais, relacionamentos e bases patrimoniais de pessoas físicas e jurídicas”, sem, contudo, especificar de que relacionamentos trata a norma. Essa amplitude pode implicar, diretamente, o devassamento da vida e das atividades de pessoas físicas e jurídicas, sem observância do devido processo legal.
Há incerteza, ainda, quanto ao término do tratamento de dados e a impossibilidade de sua retransmissão. Trata-se de verdadeira possibilidade de quebra de sigilo (fiscal, bancário, telefônico), o que apenas é possível por intermédio de autorização judicial, sob pena de violar-se o Estado Democrático de Direito (devido processo legal e ampla defesa – incisos LIV e LV do art. 5º da CF). Portanto, a forma como prevista no projeto de conversão se mostra ilegal e inconstitucional.
Ainda sobre esse tema, o artigo 16, I do PL 15/21 aborda a possibilidade de transmissão, para usuários privados, de “dados públicos” apenas – mas sem definir suficientemente esse conceito. Dados públicos são aqueles que não gozam de proteções válidas quanto a privacidade, segurança ou controle de acesso; correspondem, portanto, a um conceito genérico que necessita delimitação.
Na exposição de motivos do PL 15/21, consta como um dos objetivos do Sira (art. 14, I) a redução dos custos de transação da concessão de crédito. Como se sabe, a recuperação do crédito, em caso de inadimplemento, implica elevados custos, cuja perspectiva impacta a concessão do crédito, encarecendo-o aprioristicamente. Assim, na medida em que se dá aumento dos custos dos meios para a efetivação da recuperação do crédito, evidentemente haverá um impacto negativo ex ante, ou seja, na sua concessão. Portanto, na medida em que o inciso III do art. 15 c/c inciso V, do art. 16 abrem caminho para a monetização do uso do Sira, isso opera contra os argumentos do Poder Público ao objetivar a redução dos custos de transação. Vale destacar que a busca de bens em cartórios imobiliários e a penhora on line no SisbaJud contam com pagamentos de emolumentos e taxas que irão se somar ao custo da utilização do Sira.
O artigo 16 I do PL 15/21, por sua vez, apresenta o completo esvaziamento das atribuições da Agência Nacional de Proteção de Dados, criada pela Lei n. 13.709/2018, com a redação dada pela Lei n. 13.853/2019 (ANPD). Com efeito, a mencionada regra dispõe que ato do Presidente da República disporá sobre as regras e diretrizes para o compartilhamento de dados e informações. Há conflito com a competência da ANPD, notadamente o artigo 55 – J e K – da aludida lei. [1]
Já o inciso V do artigo 16 do PL 15/21 prevê a “ampla interoperabilidade e integração com os demais sistemas semelhantes, em especial aqueles utilizados pelo Poder Judiciário, de forma a subsidiar a tomada de decisão, bem como de racionalizar e permitir o cumprimento eficaz de ordens judiciais relacionadas à recuperação de ativos”, contudo sem delimitar e/ou esclarecer com qual(is) sistema(s). Essa imprecisão do texto legislativo abre campo para indevida ingerência e acesso a sistemas privados, atentando contra a livre iniciativa e a liberdade econômica (III e IV, art. 2º, da Lei n. 13.874/2019). Assim como os supostos benefícios para a localização de bens de devedores, igualmente preocupante porque tal sistema, aliado ao cadastro positivo fiscal, pode transformar-se em uma ferramenta de intimidação e de devassa em relação aos cidadãos.
Por fim, não há qualquer instrumento de controle pelo uso indevido do SIRA por parte do Poder Executivo, especialmente pela PGFN ou pelo descarte indevido das informações então obtidas, o que a um só tempo cria um atalho para a não observância à Lei Geral de Proteção de Dados.
(iii) Sobre os vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade que maculam o Projeto de Lei 15/2021: ausência dos requisitos de relevância e urgência e a impertinência temática do projeto de lei de conversão
Além dos problemas já apontados nesta Nota Técnica, o PL 15/21 está eivado de vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade que indicam sua rejeição pela Casa Legislativa Federal.
A matéria regulamentada pela MP 1040/21 não atende aos requisitos constitucionais da relevância e urgência, consoante disposição do artigo 62, caput da Constituição Federal. A atribuição de capacidade normativa ao Poder Executivo é excepcional.
Com efeito, constitui procedimento cautelar exclusivo do Chefe do Poder Executivo, que se legitima em face do estado de emergência e do periculum in mora, o que não se verifica in casu. Isso porque é ordinária a temática do texto legislativo, que comporta mais de seis objetos diferentes, nenhum deles de tal urgência que não pudesse aguardar os trâmites do processo legislativo ordinário.
Por essa razão, não há fundamento constitucional para seu tratamento por medida provisória. Eis o vício de inconstitucionalidade que impede a conversão da MP em Lei.
Além disso, tanto a MP 1040/21 quanto o PL 15/21 contém vício de inconstitucionalidade consubstanciado na regulamentação de matérias de direito processual civil (tais como prescrição intercorrente, citação, comunicação de atos processuais por meio eletrônico), violando frontalmente o artigo 62 § 1º da Constituição Federal, a desafiar o controle de constitucionalidade, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, tanto pelo modo concentrado[2] como pelo difuso.[3]
Ao incluir matérias processuais na lei de conversão da MP 1040/21, o PL 15/21 também viola garantias constitucionais do devido processo legal posto os dispositivos insertos não guardam relação temática com o objeto original da medida provisória não tendo, portanto, pertinência temática com o texto original bem como versam sobre matérias distintas daquelas de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.
É entendimento do Supremo Tribunal Federal que viola a Constituição Federal, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.[4]
Nesse sentido, se a emenda parlamentar da lei de conversão não pode ampliar o conteúdo temático do texto original da Medida Provisória, indubitável que são também aplicáveis a esse procedimento especial de conversão legislativa as mesmas restrições constitucionais que conformam e condicionam o regular exercício do poder de oferecer emendas.
(iv) Conclusão
Em virtude das inconstitucionalidades e ilegalidades expostas nesta Nota Técnica, o IASP, em nome de seus associados, sugere a esta Casa Legislativa Federal a rejeição do PLV 15/21 ou, ao menos, que se proceda à revisão do texto legislativo para dele suprimir as ameaças à liberdade de exercício profissional, às garantias constitucionais ao sigilo de dados (fiscal, bancário, pessoais), ao devido processo legal e à segurança jurídica ora apontadas.
[1] “Art. Art. 55-J. Compete à ANPD:
[…]
III – elaborar diretrizes para a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade;
Art. 55-K. A aplicação das sanções previstas nesta Lei compete exclusivamente à ANPD, e suas competências prevalecerão, no que se refere à proteção de dados pessoais, sobre as competências correlatas de outras entidades ou órgãos da administração pública.
Parágrafo único. A ANPD articulará sua atuação com outros órgãos e entidades com competências sancionatórias e normativas afetas ao tema de proteção de dados pessoais e será o órgão central de interpretação desta Lei e do estabelecimento de normas e diretrizes para a sua implementação.
§ 2º As reuniões do CIG serão convocadas pelo seu Coordenador.
§ 3º Representantes de outros órgãos e entidades da administração pública federal poderão ser convidados a participar de reuniões do CIG, sem direito a voto.”
[2] STF, ADIn 2736, Pleno, rel. Min. Cezar Peluso, 08.09.2010.
[3] STF, RE 581.160, Pleno, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 20.06.2012.
[4] STF, ADIn 5127, Pleno, rel. Min. Rosa Weber, 15.10.2015.