A cidadania não é substantivo masculino

No dia 28 de março, houve o 1 .º Encontro da Advocacia Feminina Paulista, realizado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (lASP), pela Associação dos Advogados de São Paulo(AASP) e pela Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB-SP). Ao reunir as três principais entidades da advocacia paulista, o evento evidenciou a necessidade de avançar na compreensão do que significa o feminino na profissão: seus desafios e potencialidades, bem como as ameaças e violências ainda existentes contra a mulher no exercício da advocacia.

Sejamos realistas. Ainda estamos longe de entender, respeitar e promover adequadamente a presença da mulher no espaço público. Estamos habituados a ouvir que uma das principais mudanças sociais do século passado foi a entrada das mulheres no mercado de trabalho (elas sempre trabalharam – e muito – na esfera privada). No entanto, ignora- se a real dimensão dessa transformação, tratando-a como um fenômeno assimilado, como se já tivéssemos entendido suas exigências e suas consequências.

É tudo muito recente. Durante o mestrado em Direito Penal na USP, descobri que, na minha família, ao menos seis gerações haviam cursado o ensino superior. No entanto, esse acesso referia-se exclusivamente aos homens. Para as mulheres da minha família, eram apenas duas gerações com acesso à universidade. Essa diferenciação não se apaga facilmente.

Há muita coisa arraigada.

Tão arraigada que a própria luta pela efetiva igualdade é ainda vista por muita gente como causa acessória, concessão que se faz ao politicamente correto, efeméride no mês de março ou mesmo motivo de piada no grupo de WhatsApp.

Como é fácil ser obtuso a partir de um lugar de privilégio.

Até hoje muitos homens continuam repetindo, com outras palavras, a frase atribuída a Maria Antonieta, rainha da França: “Se não têm pão, que comam brioche”. Não entenderam nada.

É preciso abrir os olhos à realidade. E se a realidade de desigualdade não é bonita, a realidade de transformação e potência do feminino na vida profissional é incrivelmente entusiasmante.

Não há advogada que não tenha uma história de discriminação no exercício da profissão em razão de ser mulher. E, como advertiu Patricia Vanzolini, primeira presidente mulher da OAB-SP e atual conselheira federal da OAB, continua existindo violência física contra as mulheres no exercício da advocacia. Seus corpos são ainda vistos como disponíveis para serem tocados, apalpados, violentados.

Quantas advogadas ainda hoje, quando vão a uma diligência na delegacia, colocam uma aliança no dedo anelar na tentativa de diminuir o risco de sofrerem algum desrespeito?

No entanto, ressaltou Claudia Bernasconi, primeira presidente mulher da Comissão de Prerrogativas da
OAB-SP, apenas 20% das violações contra as mulheres são denunciadas. É preciso, disse Silvia Souza, conselheira federal da OAB, tornar efetiva a Resolução 5/2024 do Conselho Federal da OAB, que estabeleceu mecanismos de enfrentamento à violência racial e de gênero.

O desrespeito, no entanto, não ocorre apenas na delegacia.

É também nos altos escalões, nas reunIoes sofisticadas, nos escritórios charmosos.

E ele não ocorre apenas quando se está no início da carreira – quando se é estagiária ou advogada júnior. A intimidação e a discriminação existem mesmo depois que se alcançou uma posição de prestígio profissional, um lugar de poder. Priscila Ungaretti, primeira secretária estadual de Transportes no País, recordou sua experiência diária com o mansplaining: homens continuamente querendo ensinar o que e como fazer.

Não basta chegar aos cargos superiores. A assimetria de poder é de tal ordem que, mesmo em posição hierárquica superior, as mulheres precisam estar vigilantes para serem respeitadas enquanto profissionais e enquanto mulheres. Não há zona de conforto para as mulheres no poder. E para reverter essa dinâmica, lembrou Maíra Recchia, conselheira estadual e presidente da Comissão das Mulheres Advogadas da OABSP, não há outro caminho que ampliar a participação da mulher na política. Para avançar na causa da igualdade, o poder tem de ser também feminino.

Habitualmente feminino.

Mas não há motivo para temer.

A presença feminina é altamente benéfica para toda a sociedade. A partir de dados empíricos, Ana Cândida Marcato, diretora da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), mostrou como a presença da mulher, seja no âmbito estatal seja no setor privado, representa sempre aumento da eficiência e da produtividade do trabalho.

Existe todo um mundo de igualdade extremamente positivo a ser conquistado e celebrado.

Mas, lembremos, não se pede nada extravagante. A igualdade é a base da República.

Ao mesmo tempo, ela ainda está dolorosamente distante.

É preciso um giro copernicano na sociedade, na cultura, no poder.

Não há construção da cidadania só com homens. Não se vencem as batalhas sociais e econômicas só com soluções masculinas. O protagonismo da mulher na vida pública – em concreto, na advocacia – não é um favor. É estrito requisito de igualdade, é direta exigência de efetividade.

Por: Nicolau da Rocha Cavalcanti
Publicado em: O ESTADO DE S. PAULO – ESPAÇO ABERTO – pág.: A04. Qua, 9 de Abril de 2025